Sobre a Demência
Toda tu tremias. A chuva caía impiedosa e, na rua, poucos se aventuravam a fazer-lhe frente. Que tu estivesses parada no meio de uma praça vazia a permitir-lhe cair sem protestos, parecia coisa de loucos.
Quando cheguei à tua beira evitei tocar-te; nunca sei se vou ser a tua filha ou uma estranha. Mas daquela vez fui uma cara sobejamente conhecida para merecer um sorriso, antes de me dizeres serenamente: “Está a chover”.
Naquele momento, não tive como evitar as gargalhadas que me saíram da boca aos soluços. Encontrar-te bem quando, meros segundos antes, te pensava perdida, tomou o meu corpo de assalto e eu só tive tempo de me render.
Depois de um segundo de confusão juntaste-te a mim, e rimos como não fazíamos há anos. Como se estivéssemos a rir a mesma piada. Não estávamos. Mas aos olhos de qualquer um, eu parecia tão louca quanto tu, a rir do mesmo nada, debaixo da mesma chuva. Era-mos iguais, família; como já não conseguíamos ser desde que te foste embora.
As tuas visitas são cada vez menos e mais espaçadas, e eu já dou por mim a desejar que não apareças sequer. A filha da mãe desta doença tornou-me num ser egoísta e é-me mais fácil sentir a tua falta do que perder-te uma e outra vez.
Mais fácil, mas, ainda assim, a maior provação da minha vida: ser órfã de mãe viva.
Mas os dias passam e os fardos tornam-se mais leves e, de vez em quando, ainda esboço um sorriso – daqueles que não chegam aos olhos – ao recordar-me do teu.
Agora que já não temos mais memórias para criar, restam-me as longas conversas que temos na tua ausência.