Sangue, Urina e Kiwis
Durante os meus anos como rapariga da farmácia, apanhei de tudo: um senhor que, acabado de vir da hemodiálise, pintou o chão de vermelho enquanto aguardava na fila pelos remédios do costume; uma miúda que chegou ao balcão, deixou uma poça de urina, e correu porta fora, sem dizer uma palavra; e uma mulher que nos fez abrir a porta dez minutos mais cedo, para medir a tensão, e acabou por deixar o pequeno almoço todo no lavatório da casa de banho.
Mas esta é a história que quer ser contada.
Ela ficou no carro. Primeiro sinal de que algo não estava bem. Se viessem comprar uma pilula do dia seguinte tinham entrado os dois e, para comprar preservativos, ele tinha vindo sozinho.
Não estava mais ninguém na farmácia, mas, ainda assim, relatou-me o seu problema no tom de voz que se usa para espalhar a última coscuvilhice que se ouviu na padaria sobre a vizinha do segundo esquerdo.
“Eu não estou com ela,” disse, apontando com o polegar para trás de si, “mas ela engravidou pra ver se me prendia”.
Depois de perceber que os cinco dias após a relação sexual desprotegida estavam mais que passados, sugeri o hospital mais próximo. “Até às dez semanas, já é permitido em Portugal,” expliquei eu, sabendo que a mudança na lei era ainda suficientemente fresca para ser desconhecida por muitos.
Mas ele sabia ao que vinha; procurava uma solução mais rápida e menos vistosa. Algo que se resolvesse com um punhado de comprimidos soltos, sem recibos ou receitas médicas.
“Não o consigo ajudar, peço desculpa”. E talvez o meu olhar tenha revelado algo mais que as minhas parcas palavras, porque ele acenou a cabeça, resignado, e foi-se embora.
Não conhecia nenhum dos dois – percebo que, para este tipo de coisas, não se escolha a farmácia do costume – mas, de quando em vez, dou por mim a pensar se seguiram o meu conselho, ou se haverá mais uma criança por aí, a balançar entre o ressentimento da mãe e o desinteresse do pai.