O Armário
Durante alguns dias, naquele ano, acordei a pensar no armário dos medicamentos de outra pessoa; provavelmente, uma gaveta da cozinha onde, juntamente com a medicação habitual, ela deixou as estranhas caixas.
O marido era a sua mão direita e também a esquerda e, quando o derrame o atirou para uma cama, ela apareceu-me ao balcão da farmácia a perfeita imagem do desespero. Era cliente habitual e eu sabia muito bem que apenas conseguia assinar o nome depois de muitos anos de prática e que os seus filhos não chegariam de França a tempo de a ajudar. Então, repeti a posologia vezes suficientes para a saber de cor e perceber que não iria fazer a mínima diferença; ela não estava suficientemente bem para memorizar o que quer que fosse.
Aquela foi a primeira vez que tive de desenhar sóis, luas, pratos e talheres em caixas de medicamentos para tentar garantir que os meus utentes recebiam a medicação correta à hora certa. A primeira mas não a última.
A minha preocupação terminou três dias depois, quando ela voltou à farmácia com um saco cheio de medicamentos. Ele não iria precisar mais deles, disse ela. Eu dei-lhe os sentimentos e ela agradeceu-me; talvez por mais do que só pelas condolências.