Donzela em Perigo
Os gritos podiam ser ouvidos pela vizinha mouca do rés-do-chão. Já os palavrões, felizmente, não se conseguiam distinguir para além do 3º esquerdo.
Passavam uns minutos das nove da noite quando a Rita se apercebeu que não tinha um único par de calças lavado e que, sim, teria de ir de saia para o trabalho.
A gilete, que habitava o bidé há vários meses, estava suficientemente ferrugenta para ser posta de lado – assim como o respetivo banho de sangue que se adivinhava trazer – e o creme depilatório tinha passado de validade algures no início da década anterior. Restava, apenas, a velhinha máquina que, ligada à tomada, ainda cumpria as suas funções de instrumento de tortura medieval dos tempos modernos.
Se as bandas de cera precisam de uma boa dose de coragem a cada puxadela, estes aparelhinhos, que praticamente arrancam pelo-a-pelo, parecem ter sido desenhados com o único propósito de quebrar os seus utilizadores e levá-los a confessar até aquilo que não fizeram.
Depois de meia perna depilada, a Rita estava mais que preparada para atirar a metafórica toalha ao chão.
A decisão de pôr um fim ao seu martírio e levar antes umas meias-calças opacas (que podiam ou não ter uns fios puxados desde a Primeira Comunhão da prima mais nova do lado da mãe) foi a melhor que tomou desde que se despediu do último emprego e só pecou por tardia.
E, assim com’ assim, talvez os vizinhos a imaginassem a ter uma louca noite amor ao invés da solitária sessão de tortura auto-infligida que teria, sem dúvida, traumatizado o gato que ela não tinha.